Por Que Os Astrólogos Védicos Medievais São Tão Fatalistas?

Em muitos círculos de estudo da astrologia védica, especialmente entre iniciantes, há uma percepção frequente de que os astrólogos dos tratados medievais eram excessivamente “fatalistas” em suas previsões, sobretudo quando comparados aos praticantes contemporâneos. Esse julgamento, no entanto, revela mais sobre as expectativas modernas em relação à astrologia do que sobre a abordagem real dos antigos mestres. Mas será que essa suposta rigidez fatalista reflete a visão original da Jyotisha, ou estamos interpretando esses textos com uma mentalidade anacrônica e descontextualizada?

Necessidade da Tradição Oral

Nenhum texto sagrado pode ser compreendido em sua plenitude sem o amparo da tradição oral, pois através dela a obscuridade da letra é removida pela luz espiritual do guru, o mestre em Jyotisha, que esclarece estes textos compartilhando com os seus discípulos o entendimento, inflando novamente no coração destes ensinamentos a vida e o espírito dos Vedas. É ele quem guia o buscador na interpretação das escrituras, desnudando todos seus significados mais sutis.

 

Traduções São Temporárias

Além disso, até as melhores das traduções frequentemente carecem de uma precisão perfeita, perdendo nuances essenciais ao transpor o sânscrito para o inglês ou qualquer outro idioma. Toda tradução, por mais cuidadosa que seja, carrega em si o peso da traição linguística, incapaz de substituir por completo a experiência da leitura no original. A tradução é apenas uma muleta temporária, um apoio provisório para o buscador enquanto ele ainda não domina o idioma sagrado, o sânscrito. Seu propósito não é substituir a fonte original, mas servir como ponte até que a compreensão direta se torne possível.

Escritores De Tratados Eternos

Outro aspecto relevante para compreendermos o porque parecem tão fatalistas para os leigos, é o estudo dos mapas astrológicos destes autores que escreveram os grandes tratados. Não é incomum que autores cujas obras perduraram por séculos apresentem uma influência significativa de Saturno sobre Júpiter—seja pela conjunção entre ambos, seja pela posição de Júpiter em Capricórnio ou Aquário, signos de Saturno. Essa marca saturnina confere solidez, austeridade e estrutura à linguagem desses textos, tornando-os, muitas vezes, densos e rigorosos, mas Saturno eterniza a sabedoria que há em Júpiter.

Os textos contemporâneos populares, por sua vez, tendem a refletir uma essência mais canceriana, marcada pela leveza, pela afetividade e por uma preocupação com a percepção do estado emocional do leitor. Há um anseio por criar laços autênticos, estabelecendo uma conexão íntima, tocante e familiar com quem lê. Não por acaso, Marte em Câncer e Saturno em Câncer frequentemente se manifestam nos mapas de grandes escritores da atualidade, conferindo-lhes a sensibilidade necessária para traduzir emoções em palavras.

 

Medievalistas Possuem Autoridade Secundária

No método científico védico, a opinião dos astrólogos medievais (shabda) tem um papel secundário em relação à dos grandes rishis— Gautama, Bhrigu, Garga e Parāśara—, estes santos se assentam nos tronos cravejados das joias dos seus méritos e com as coroas de honra do seu conhecimento. Contudo, acima de qualquer opinião, está a comprovação empírica em larga escala (pratyaksha), apenas após esta análise minuciosa, podemos fazer uma única afirmação segura, que pode ser reproduzida na leitura de todos os mapas astrológicos.

Os astrólogos da Antiguidade dispunham de um número consideravelmente menor de mapas para embasar suas conclusões, assim como astrólogos independentes que ainda utilizam a mera evidência anedótica nos nossos dias afirmando observações através de uma dúzia de mapas, diferentemente de institutos modernos, como a Academia Brasileira de Astrologia Védica, que hoje analisam amostragens vastas e diversificadas com milhares de mapas e poder computacional em seu banco de dados. Enquanto o astrólogo védico dos tempos antigos se concentrava mais no cotidiano das cortes e nas necessidades de seus empregadores, os pesquisadores contemporâneos traçam panoramas abrangentes, explorando uma multiplicidade de perfis humanos com uma profundidade e tecnologia inéditas em uma população.

A Cultura Oriental

Os ocidentais, influenciados pela tradição grega e pelo movimento de psicologização da astrologia ao longo do século passado, desenvolveram uma expectativa particular sobre o que esperar dessa ciência. Há um impulso quase instintivo de buscar nos textos antigos uma leitura detalhada de personalidades e relações, mesmo que essas obras tenham sido concebidas em contextos históricos distintos do nosso. No entanto, a Jyotisha não utiliza esse tipo de perspectiva e abordagem, pelo menos a autêntica.

No Oriente, a astrologia não se ocupa da validação do ego, uma preocupação central na mentalidade ocidental, marcada pelo individualismo, pelo materialismo e por relações efêmeras, onde o amor romântico foi alçado à condição de redenção suprema. Já na Índia, como ensina Krishna: “Aquilo que é amargo no começo como veneno, mas que no final é doce como o néctar e que causa o despertar da autorrealização, essa é a felicidade no modo sátvico.

Dentro dessa visão, o grande propósito da astrologia não é apenas descrever personalidades ou destinos terrenos, nem ignorar o lado sombra da vida e das pessoas de forma delirante, mas apontar para o alto—para a existência de Deus e do mundo espiritual. A vida no corpo é transitória, uma ilusão passageira, e a verdadeira meta dos seres vivos é libertar-se do ciclo de renascimento e morte.

Por isso, os tratados têm a segurança de nos prometer o seguinte: aquele que praticar a astrologia védica autorizado por um mestre, deverá ser respeitado como um rishi, alcançará abundância material, encontrará a felicidade em sua vida amorosa, desenvolverá discernimento para julgar com sabedoria as situações além das aparências e da pressão do poder e influência, conhecerá o caráter de alguém mais do que ele mesmo através dos Olhos dos Vedas, desfrutará de filhos virtuosos e trilhará o caminho da libertação espiritual, avançará no conhecimento, tanto do mundo visível quanto do eterno e imortal, livrando-se assim das amarras do sofrimento da roda das encarnações.

O Puritanismo Do Ocidente

O Papa Pio V mandou tapar todos os órgãos genitais das estátuas do Vaticano no século XVI.

Para nós, pode parecer, no mínimo, excêntrico que Parāśara descreva a forma da vulva como um indicativo de personalidade e destino em seu tratado, ou que os astrólogos medievais analisem imoralidades sexuais a partir da combinação de certos planetas. No entanto, essa estranheza surge não do conteúdo em si, mas do tom em que o lemos. Muitas vezes, abordamos esses textos com uma mentalidade infantilizada, quase cômica, como se estivéssemos na quinta série, quando, na realidade, a leitura correta exige a mesma seriedade e objetividade empregadas na análise de um livro de anatomia médica.

Os ocidentais, profundamente influenciados pelo pensamento abraamico, tendem a enxergar a sexualidade e os órgãos genitais como algo impuro, vergonhoso ou estritamente privado, uma herança das tradições religiosas que moldaram sua civilização. Os indo-arianos, por outro lado, possuíam uma abordagem mais equilibrada e resolvida quanto ao sexo. Para eles, a sexualidade era apenas mais uma dimensão da existência, a ser vivida de forma ordenada, dentro de um casamento e de acordos fixos, sem ser um tabu ou um motivo de culpa. O corpo não era visto como algo vergonhoso, apenas o veículo da Superalma provando o mundo através da nossa experiência humana.

Livre Arbítrio É Um Conceito Cristão

Image

O livre-arbítrio é uma doutrina central em muitas tradições monoteístas rígidas, como o zoroastrismo, catolicismo e o judaísmo ortodoxo. No entanto, nem todos os ramos do protestantismo o aceitam plenamente, e no islã, a crença majoritária tende a rejeitá-lo em favor da predestinação divina (qadar). Já a neurociência, com base em estudos sobre a atividade cerebral, sugere que o livre-arbítrio é uma ilusão, defendendo que nossas decisões são determinadas por processos inconscientes antes mesmo de nos tornarmos conscientes delas.

Na física clássica newtoniana, o universo opera como uma máquina previsível, onde tudo pode ser calculado se tivéssemos informações suficientes. Isso favorece o determinismo, no qual cada evento é consequência inevitável de causas anteriores. Por outro lado, a mecânica quântica introduziu a ideia de aleatoriedade em eventos subatômicos. Isso poderia sugerir que nem tudo está rigidamente predestinado.

No contexto hindu, a noção de livre-arbítrio, tal como concebida no Ocidente, não é um conceito central. No entanto, tampouco há uma crença generalizada em um destino absolutamente rígido e imutável. A maioria dos hindus adota uma visão mista, na qual existe um “destino” traçado por ações passadas (sanchita karma), mas com possibilidade de mudança em determinados momentos (prarabdha karma e kriyamana karma), seja por penitências espirituais, a sabedoria do dharma, a intervenção divina e o conhecimento das leis naturais. Esse equilíbrio entre “determinismo e livre ação” reflete a complexidade da visão hindu sobre a vida, na qual a existência não é completamente pré-definida, mas também não é fruto de escolhas absolutamente livres.

Se os autores desses tratados realmente acreditassem em um destino absolutamente rígido e imutável, não teriam dedicado tantas páginas a descrever rituais, mantras e oblações destinados a mitigar os efeitos adversos dos planetas, as chamadas “retificações planetárias” (upayas). Essas práticas revelam a crença em um destino parcialmente flexível, onde certas influências cármicas podem ser amenizadas ou redirecionadas por meio de conhecimento e ação correta. No entanto, ao mesmo tempo, reconheciam que há aspectos fixos ligados à encarnação atual, resultantes do karma acumulado, que delimitam, mas não anulam completamente, a capacidade de transformação do nativo.

Conclusão

A ideia de que os astrólogos védicos antigos eram fatalistas decorre de uma leitura anacrônica e de expectativas modernas influenciadas pela psicologização da astrologia. Seus tratados não tinham o propósito de validar grandes egos ou oferecer mero conforto emocional, mas sim revelar a ordem cósmica e o karma. Ainda sim, o verdadeiro propósito da Jyotisha não é fixar um destino imutável, mas oferecer autoconhecimento para que possamos compreender os padrões obtidos em vidas anteriores e que enviesam a vida presente e, quando possível, modificar o nosso próprio caminho através da indicação de práticas espirituais.

Comentários
2025-04-16T23:25:40+00:00

About the Author:

André Kërr é co-fundador da Academia Brasileira de Astrologia Védica e escritor best-seller na sessão “Espiritualidade” da Amazon Brasil. Ele é astrólogo védico, engenheiro de software, tradutor de livros clássicos e modernos da jyotisha, pesquisador da cultura indiana e desenvolve novas tecnologias para auxiliar a comunidade brasileira. Conhecedor das astrologias de Parashara, Jaimini, Brighu Nadi e KP.
1
Olá! Caso você queira mais informações sobre consultas e cursos, clique no botão verde abaixo para conversar conosco pelo Whatsapp!
Powered by