A Difamação No Caminho do Verdadeiro Mestre

Ilustração: O Senhor Krishna é acusado de roubar o Syamantaka e matar Satrajita.

Uma das verdades mais paradoxais e difíceis de compreender na jornada espiritual é que os mestres que se dedicam verdadeiramente ao Dharma, à vontade divina, inevitavelmente enfrentarão perseguições e difamações. Essas perseguições, longe de serem meros obstáculos, são uma característica intrínseca da busca espiritual genuína, que se tornou ainda mais forte na Era de Kali. Quanto mais autêntico o mestre, mais intensa será a oposição que ele enfrentará.

Introdução 

Na trajetória de qualquer mestre verdadeiro, a difamação não é apenas uma consequência de seu impacto transformador, mas também uma manifestação de seu compromisso com a verdade, que inevitavelmente entra em conflito com as percepções e interesses daqueles que não estão prontos para acolher tal luz. Essa dinâmica, aparentemente injusta, foi observada ao longo da história e continua a ser uma constante em todos os grandes espiritualistas, desde os tempos antigos até o presente. Não importa o caminho seguido ou a tradição religiosa escolhida — a perseguição e a calúnia são quase uma marca registrada da autenticidade espiritual. Do ponto de vista do plano divino, este processo doloroso auxilia o buscador a se abster da paixão pela honra e prosseguir em seu estado sátvico.

Estudos contemporâneos também concordam com essa verdade, sugerindo que aqueles que encarnam virtudes e altruísmo, muitas vezes considerados “muito  bons”, se tornam alvo de desconfiança, ressentimento e ataques. Um estudo realizado pela Universidade de Nottingham em 2002 revelou que pessoas com características altruístas são frequentemente vistas com suspeita e tornam-se alvo de difamação§, porque, de alguma forma, ameaçam o ego de outros que não podem ou não estão dispostos a contribuir da mesma forma.

A sabedoria popular já sintetizou essa verdade em ditados bem conhecidos: Árvore que dá frutos leva pedrada” e “Prego que se destaca leva martelada“. Essas máximas refletem a natureza humana de reagir com hostilidade àqueles que, por suas virtudes ou realizações, rompem a uniformidade do comum e mais do mesmo. Afinal, a luz que ilumina também ofusca, e o destaque sempre atrai olhares — nem sempre benevolentes.

Exemplos Das Escrituras

Constantemente, ao longo da história, grandes figuras espirituais e mestres iluminados testemunhados pelas escrituras enfrentaram perseguições e acusações infundadas. Essas acusações, muitas vezes, são ataques à integridade pessoal do mestre, deturpações de acontecimentos ou até mesmo complôs políticos por interesses pessoais ou comerciais.

O Senhor Krishna, quando ainda era criança, foi acusado de comer terra pelas outras crianças, sendo necessário abrir sua boca para mostrar à sua mãe que, na realidade, ele carregava o universo inteiro em sua boca e não havia feito aquilo. Além disso, foi chamado de “ladrão de queijo e manteiga”, devido ao seu amor por comer iguarias nos lares da vizinhança.

Quando adulto, Krishna foi falsamente acusado de matar e roubar uma pessoa para obter o rubi Syamantaka Mani, uma joia dada pelo deus Sol, Surya, a um devoto fiel§.

No Ramayana, o príncipe Rama, ainda jovem, foi vítima da manipulação de sua madrasta Kaikeyi, que, ao orquestrar um exílio de 14 anos para que seu filho Bharata pudesse reinar, dando ouvidos às fofocas de Manthara, acusou nas entrelinhas que Rama era obcecado pelo poder. Essa acusação teve um impacto profundo na vida do príncipe, que, embora sendo o herdeiro legítimo, teve que enfrentar uma vida de dificuldades e exílio§.

A esposa de Rama, Sita, também enfrentou acusações falsas após ser resgatada do cativeiro de Ravana. Foi alegado que ela havia perdido sua castidade durante o tempo em que esteve sob o domínio do demônio, e ela teve que provar sua pureza diante de todos§.

Na obra Shri Shani Mahatmya, Brihaspati, o guru dos deuses, é falsamente acusado de assassinar um ministro-chefe e um príncipe de um reino. Isso ocorreu quando, ao viajar à Terra para se banhar no Ganges e realizar rituais, os melões que ele carregava dentro de uma bolsa foram confundidos com cabeças humanas. Após um julgamento, Brihaspati foi condenado à morte, mas conseguiu escapar quando a verdade foi revelada, e as duas vítimas retornaram sãos e salvos no final do dia.

Ramakrishna, um grande mestre espiritual do século XIX, foi alvo de críticas e acusações de “loucura” devido aos seus estados de êxtase espiritual. Alguns até o confundiram com um transexual ou homossexual enrustido — não haveria nenhum demérito se o fosse — simplesmente porque se vestia de mulher durante seus cultos à Mãe Divina§. Hoje, sua obra e legado demonstram que ele foi um avatar do Senhor, cuja natureza excêntrica e práticas espirituais foram incompreendidas pela sociedade de sua época.

No Bhagavata Purana, o jovem Prahlada é um exemplo de um devoto que enfrentou perseguição e uma oposição feroz de sua própria família, especificamente de seu pai, Hiranyakashipu, um asura assim como ele, que se opôs ao seu culto ao Senhor Vishnu. Apesar de ser rejeitado e perseguido por sua própria casa, Prahlada não abandonou sua devoção, sendo mais um verdadeiro devoto mal interpretado ou atacado por aqueles que estão próximos§.

Devadatta, primo de Siddhartha Gautama, o Buda, tentou usurpar a liderança de seu parente e, para isso, espalhou mentiras, acusando-o de viver no luxo. Criou uma seita com regras rígidas e conseguiu reunir seguidores, mas também tentou matar Buda de diversas formas, incluindo o lançamento de uma rocha e a liberação de um elefante enfurecido contra ele§. Mesmo diante de tais ataques, o impacto de Siddhartha na história da humanidade não pôde ser apagado.

Jesus Cristo, considerado um shakti avatar de Vishnu, também enfrentou acusações infundadas e críticas. Foi chamado de “comilão e beberrão” e criticado por associar-se com pessoas marginalizadas. Sua mãe, Maria, foi vista por detratores como uma mulher adúltera, e ele foi perseguido por outros eruditos da época por ensinar verdades que desafiavam as normas do judaísmo. Quando o sacerdote Caifás, enfurecido por seus ensinamentos, organizou sua condenação, Jesus foi crucificado como um revolucionário.

Durante sua morte, o povo não o defendeu, mas preferiu libertar Barrabás, um terrorista, e ele foi humilhado e até seus seguidores mais próximos se esconderam. Hoje, sua vida marca o início do calendário ocidental, e seus ensinamentos são seguidos por bilhões de pessoas ao redor do mundo.

Jerusalém, Jerusalém, que mata os profetas, e apedreja os que são enviados por Deus! Quantas vezes quis eu ajuntar vocês como Meus filhos, como a ave ajunta os seus filhotes debaixo das asas, e vocês se negaram!” – Jesus Cristo no Evangelho de Mateus 23:37.

A história de Buda e de Jesus nos revela uma verdade dolorosa: frequentemente, a inveja não vem de pessoas distantes ou desconhecidas, mas daquelas que estão mais próximas de nós. Aqueles que nos observaram crescer e testemunharam nossas vitórias muitas vezes são mais sensíveis ao nosso sucesso, pois veem nele uma ameaça à sua própria percepção de valor e competência. 

“Abençoados sejam os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados são quando, por Minha causa, difamarem e perseguirem vocês, e, mentindo, disserem todo mal contra vocês. Alegrem-se intensamente! Porque será grande a sua recompensa nos Céus; pois assim também perseguiram aos profetas que viveram antes de vocês.” – Jesus Cristo no Evangelho de Mateus 5:10-12.

Nenhum mestre na História da humanidade foi simplesmente aplaudido ou amado de forma incondicional enquanto estava vivo. Muitos, de fato, foram rejeitados até pelos próprios parentes ou pelas pessoas próximas. Quando Deus envia um ser para cumprir um propósito divino ou quando Ele mesmo se encarna na Terra, o objetivo não é simplesmente oferecer aprovação ou dizer que tudo está bem como está. Na maioria das vezes, sua intervenção direta ocorre para purificar tradições que se corromperam ao longo do tempo ou para combater forças malignas que, devido ao poder que adquiriram, passaram a influenciar e até incomodar a paz nos reinos superiores.

É muito mais fácil ter fé em mestres, sábios e eruditos que já partiram, que estão imortalizados em seus feitos e palavras. No entanto, reconhecer a grandeza e a sabedoria de um mestre enquanto ele ainda está entre nós exige uma percepção mais aguçada e uma humildade que muitos, infelizmente, não estão dispostos a cultivar, nem adquiriram mérito suficiente em vidas anteriores para serem capazes de reconhecê-lo, mesmo quando Deus está na sua frente. 

A Astrologia Da Difamação

Certas combinações astrológicas podem realmente favorecer o fenômeno da calúnia, fofoca e difamação, conforme os princípios da astrologia védica da linhagem Navapratham. Tais aspectos indicam momentos em que indivíduos, especialmente aqueles com predisposição à santidade ou virtude, podem ser injustamente atacados por palavras e acusações falsas.

Quando em um trânsito Júpiter e Saturno estão retrógrados, as pessoas verdadeiramente santas ou justas sofrerão injustiças. Quando alguém olha para a Lua na fase do Ganesha Chaturthi (por volta da última semana de agosto), ele sofrerá de falsas acusações, o Mithya Dosha. Quando alguém está debaixo do Sade Sati e age com arrogância, o Senhor Shani tira aquilo de mais valioso que possuímos, podendo agir com ainda maior severidade contra aqueles que caçoam e blasfemam dele.

Há ainda um dosha chamado Nishpapa Dosha, que ocorre quando no mapa astral védico, seja pelo mapa D1 ou D9, onde Sol está associado (está diretamente nestes signos, aspectado por um planeta nestes signos ou o dispositor está em um deles) a Peixes ou Sagitário, estando também Mercúrio e Marte associados (conjunção entre eles, Mercúrio ou Marte em seus signos, etc.) e há a presença simultânea de Saturno aspectando ou conjunto com Ketu, o nativo será falsamente acusado ao longo da vida, podendo até mesmo sofrer linchamento público e perseguições.

Certas configurações astrológicas no D1 e D9 podem proporcionar uma proteção excepcional ao nativo, de modo que, mesmo diante de falhas, seus erros são facilmente perdoados ou simplesmente esquecidos. Isso ocorre quando Marte ou seu dispositor está em Câncer, com Saturno ou seu dispositor em Câncer ou Peixes. Quando Júpiter está em Câncer, a pessoa também é vista como honrada pelo status quo da sua sociedade, independente dos seus atos. Nessas circunstâncias, o nativo se mantém imune a suspeitas, sendo visto com uma aura de dignidade, confiança e inocência por todos, independente desta ser a verdadeira situação.

Sobre O Pecado Da Difamação

O Supremo Senhor disse: Ó filho de Bharata, estas qualidades transcendentais existem nos homens piedosos em estado sátvico: destemor; purificação da própria existência; cultivo de conhecimento espiritual; caridade; autocontrole; execução de sacrifícios; estudo dos Vedas; austeridade; simplicidade; não-violência; veracidade; estar livre da ira; renúncia; tranquilidade; avesso à difamação; compaixão por todos os seres vivos; estar livre da cobiça; gentileza; modéstia; firme determinação; vigor; clemência; fortaleza; limpeza; e estar livre da inveja e da paixão pela honra.” – Bhagavad Gita 16:1-3 

O termo apaiśunam (अपैषुणम्) no sânscrito, traduzido como “avesso à difamação“, é o oposto de paiśunam (पैषुणम्), que significa difamação, calúnia ou o ato de falar mal de alguém. Enquanto o último refere-se ao comportamento negativo de espalhar falsidades ou prejudicar a reputação de outros, o primeiro denota a virtude de se abster de tais atitudes, demonstrando pureza e integridade moral. Aqueles que estão comprometidos com o progresso espiritual genuíno buscam evitar qualquer forma de calúnia, difamação ou fofoca, tratando os outros com respeito e compreensão.

Este pecado possui severas consequências kármicas, não apenas contra a vítima, mas também para quem o faz, pois enfraquece ainda mais Mercúrio e Vênus, resultando em problemas financeiros, e no caso, de ser direcionado contra um instrutor espiritual levará o nativo a contrair a maldição de um brâmane, cujas consequências são gravíssimas e imprevisíveis nesta e em outras vidas. A tradição compara a difamação contra um preceptor como algo semelhante ao mais grave pecado das escrituras:

A mentira para o auto-engrandecimento, caluniar perante um tribunal e difamar um preceptor é o mesmo que assassinar um brâmane” – Manu Smrti capítulo 11, verso 55.

Onde quer que as pessoas critiquem justa ou falsamente um mestre, lá se deve cobrir os ouvidos ou partir imediatamente para outro lugar. Aquele que censura o mestre reencarnará como um asno; ao difamá-lo falsamente, virá como um cão selvagem; caso o faça dependendo de sua caridade, um verme; e aquele que o inveja retornará como um inseto.” – Manu Smrti capítulo 2, verso 201.

Isto não significa dizer que mestres espirituais verdadeiros não possam cometer erros, mas o Senhor Krishna afirma que Ele mesmo se encarregará da correção e trará a transformação que o tornará ainda mais virtuoso: “Mesmo que alguém cometa ações das mais abomináveis, se estiver ocupado no serviço devocional, deve ser considerado santo, porque está devidamente situado em sua determinação. Ele logo se torna virtuoso e alcança a paz duradoura. Ó filho de Kunti, declare ousadamente que o Meu devoto jamais perece” (Bhagavad Gita 9:30-31).

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2025-03-09T14:01:39+00:00

About the Author:

André Kërr é co-fundador da Academia Brasileira de Astrologia Védica e escritor best-seller na sessão “Espiritualidade” da Amazon Brasil. Ele é astrólogo védico, engenheiro de software, tradutor de livros clássicos e modernos da jyotisha, pesquisador da cultura indiana e desenvolve novas tecnologias para auxiliar a comunidade brasileira. Conhecedor das astrologias de Parashara, Jaimini, Brighu Nadi e KP.
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